domingo, 15 de novembro de 2009

 

Romagem a Porto Quipiri


** Nico Fidenco - Casa d'Irene **


Hoje vou levar os meus Relembrares para fora de Luanda.
Um momento sem alguma particularidade de maior, assim como poderão ter sido outros já escritos. Mas fazendo parte das minhas memórias e tendo em atenção o paradigma do Reviver Estórias, aqui fica o registo dessa recordação.
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Bairro de S.Paulo/Luanda. Ano de 1968. Vivia na Rua do Lobito. Tinha 17 anos.

Num determinado dia e mês que não posso precisar, meu pai deu a conhecer, durante o jantar, que no Domingo dessa semana iriamos até Porto Quipiri numa romagem em honra de Nossa Senhora do Sameiro. Assim dito só teria a minha mãe, ajudada pela irmã mais nova, que preparar o farnel para o pic-nic da ordem, que ele trataria das bebidas e do gelo. Disse ainda que a minha irmã mais velha,a que esteve no enredo da [clicar »» Joana "Maluca"] e marido também iam e seria só combinar a hora de saída.
Ficamos algo surpreendidos com a noticia já que nosso pai não era dado a esse género de saídas, mas estando dito só havia que se tratar as coisas em devido tempo.
No Sábado minha mãe deu inicio à preparação do vasto farnel, composto por tudo aquilo que se tem que levar para um pic-nic. Nos dias anteriores tínhamos carregado o congelador com cuvetes e pequenos recipientes com água para termos bastante gelo para as bebidas. É que o único sitio que sabíamos onde obter gelo moído ficava fora de mão, para os lados dos Coqueiros, na fábrica da Mission, e este procedimento de “fazer” gelo em casa era normal, como bem o sabem.

Para além de mim e meus pais a prole ainda era constituída pelos meus irmãos Mário, Alfa, Faty e Tony. Uma particularidade da Familia é que, com excepção de Mário e Alfa, todos somos leões (Sporting), enquanto eles são águias (Benfica).
Tambem minha mana mais velha, que já não fazia parte da prole interna dos leões, era leoa e estava casada com um leão. Convenhamos que eram leões a mais para duas águias :)). Posto isto, apenas para dissertar um pouco, ficamos a aguardar o Domingo para irmos até esse destino de nós totalmente desconhecido.
Assim no Sábado, ao fim da tarde, verificamos se tudo estava em condições para que no dia seguinte começassemos a colocar as bebidas na arca e os comes nas cestas. Fizemos uma limpeza ligeira às cadeirinhas dobráveis, assim como à respectiva mesa, enrolamos as mantas próprias para este tipo de eventos, ultimas espreitadelas ao congelador para ver como ía o “fabrico” do gelo, os abre caricas e demais utensilios à mão para nada ser esquecido. Pilhas novas para o gira discos portatil, escolher os singles a levar, cartas para o que desse e viesse, enfim, nada podia falhar.
O Domingo chegou e começamos a colocar tudo nos seus devidos lugares. Enquanto meu pai abria a espaçosa mala do nosso Chevrolet Belair



nós carregavamos a arca com as Missions, Cocopinas, Sprites e umas Nocais. Entre umas e outras bebidas iamos colocando o gelo formado nas cuvetes e nos recipientes, fazendo-o infiltrar nas aberturas formadas pelas garrafas. Por cima de tudo e bem acondicionados iam as fatias de queijo, o fiambre, a mortandela e alguma fruta.
A arca e cestos foram os primeiros a entrar na mala, depois a mesa, cadeirinhas e por fim as mantas. O gira discos foi dentro do carro, junto ao vidro de trás.
Com tudo bem arrumado fomos ter com a minha mana e cunhado (viviam na Rua do Vereador Prazeres), e encher o depósito nas bombas da Shell do respectivo Largo.
O Sol já ia alto e começava a esquentar quando finalmente os dois carros arrancaram a caminho de Porto Quipiri. Metemos à António Enes, entramos na Estrada da Lixeira e rumamos em definitivo pela Estrada do Cacuaco.
A Vila de Cacuaco, onde já tinhamos ido várias vezes, dista de Luanda cerca de 20 Kms. Estacionamos quando chegamos à Ponte do Panguila (ponto “obrigatório” de paragem) para ver se víamos, naquela parte do rio Bengo, parcialmente coberto por largas folhas, algum crocodilo sempre alvo da curiosidade do humano. Tiraram-se umas fotos, não vimos nenhum daqueles repteis e retomamos o percurso.



Devido às ondas de calor vimos a serem criados no asfalto desenhos de formas estranhas, distorcidas, assim como algumas miragens. A vegetação luxuriante nalguns casos e noutros quase que seca acompanhavam-nos ao longo da estrada. Percorridos mais alguns kilómetros eis que à nossa direita surgem as salinas do Cacuaco. Um "mar de areia branca” estendia-se perante o nosso olhar. Pequenas montanhas de sal sobressaíam na planicie quase geometrica igual da paisagem. Para as visualizarmos com mais pormenor meu pai abrandou um pouco a velocidade do Chevry, enquanto meu cunhado, que ia à frente no carro dele, parou aguardando por nós. Entretanto uma coluna de veículos começou a aparecer no nosso horizonte e olhando para trás verificamos igual fila. A progressão começou a ser mais lenta, pelo que deveriamos estar a chegar.
Mas só passados uns bons Kilómetros é que vislumbramos aquilo que nos pareceu poder ser o destino, até confirmarmos quando vimos a placa a referir Porto Quipiri.



A viagem de cerca de uns 50 kms desde que saídos de Luanda tinha chegado ao fim. Apesar de ser a primeira vez que ia a Porto Quipiri nunca uma viagem tão curta me pareceu tão longa, tendo como comparação o facto de ter ido algumas vezes até à Barra do Quanza, quando mais novo, que me pareceu ser mais longe e ter-se demorado menos tempo. Mas a verdade é que na presente situação estavamos perante uma romaria e essa ser a razão de tanta demora na chegada, atendendo que os carros eram às dezenas.
Mastros embandeirados, a igreja, situada no cimo de uma quase rasa elevação em terra à direita de quem entra na Povoação, estava toda engalanada e largas centenas de pessoas movimentavam-se dando um ar festivo ao local.



Enquanto percorriamos a estrada de asfalto em busca de estacionamento deu logo para me aperceber que Porto Quipiri seria constituída talvez por uma dúzia de casas térreas e pouco mais. Em frente à igreja, mas do outro lado da estrada, havia uma bomba de combustíveis e logo em paralelo um restaurante/café, uma espécie de tem tudo, num edifício sobre o comprido, género armazem. Durante a tarde confirmei esta minha primeira impressão.
Continuamos a nossa marcha com a atenção devida, até vermos um policia cipaio a encaminhar os veículos para um terreno de uma fazenda situada no lado esquerdo.
Saidos do carro e ao pousarmos os pés calçados com quedes (nome que davamos às sapatilhas de ginástica que não tinham atacadores) e sandálias, vimos que o solo era quase todo acastanhado sentindo-nos “deslizar” ao mesmo tempo que uma pequena mas espessa nuvem se elevava como que dançando à nossa frente e à de todos os outros que pisavam o chão.
Era caruma seca caída, atapeando o solo de toda aquela fazenda e "lançava" ao ar os seus "queixumes" de tanto estar a ser pisada. O facto de quase escorregarmos era por a caruma ser de forma arredondada, tipo agulhas, e como estavam secas .....
No percurso à procura do lugar ideal para montar a “tenda” vimos já mantas estendidas, mesas abertas, garrafões ainda com o “capacete branco” (o capacete indicava que era vinho do bom vindo da "metrópole"), alguma comida à vista, música vinda de gira-discos portáteis e de rádios. A musica era basicamente própria para o momento; Conj Maria Albertina, Pais e Filhos, Trio Odemira, Tino e o seu acordeão e de outros conjuntos tipicos. Também se ouvia bastante musica brasileira e alguma (pouca) angolana. Aquela fazenda estava convertida num autêntico arraial minhoto.
Encontrado o espaço próprio, na concepção de meu pai, lá pousamos as "imbambas" e marcamos o “nosso território”. Mantas para o chão, mesa montada, cadeirinhas abertas, a arca encostada a um pinheiro para a proteger do sol e o gelo aguentar-se e as cestas da comida também à sombra. Logo outras familias ficaram perto de nós, procurou-se saber de que região eram na “metrópole” e a conversação e confraternização tomou logo lugar entre pessoas, algumas das quais só se estavam a conhecer naquele momento.
Tudo trazido e nada mais havendo a fazer a não ser “vêr” o tempo passar (ainda não estava na hora de atacar verdadeiramente as cestas), eu, Mário e Alfa começamos a investigar o local e arredores. Embrenhamo-nos no interior da fazenda e exploramos a zona até vermos um sinal de "não avançar mais". Respeitamos a tabuleta, nada vimos de significativo e regressamos ao “acampamento”.
Nesse espaço de tempo mais familias haviam chegado, mais vozes se ouviam, os sons musicais eram dos mais variados e até parecia que havia uma disputa sobre quem tinha as colunas que produziam o som mais alto.

Comemos, bebemos (as bebidas continuavam fresquinhas) e depois, novamente os três, saimos para vermos a igreja e sentirmos a fé que para aquela Povoação fazia convergir largas centenas de crentes.
O momento religioso, para além da missa campal, era a saída do andor de Nossa Senhora do Sameiro que fazia um pequeno percurso pela estrada de asfalto e depois regressava à igreja.
Foi nesta saida, após almoço, que confirmei a primeira impressão tida de como era constituida a localidade. Pelo menos no que a minha visão alcançava.
Entretanto as familias ao som da musica dançavam, dando largas à folia e à “libertação” da alma que o arraial proporcionava. Era vê-los a dançarem, uns em calções, outros em tronco nu, uns calçados, outros descalços, sobre a caruma espessa. A ocasião era festiva, principalmente à moda minhota e do douro litoral
Outros observavam, talvez aguardando que o espaço se alargasse para poderem tambem entrarem na diversão. As familias estavam alegres e recordavam as festas que por certo na “metrópole” muitos viveram.



Procuramos de novo ser exploradores e percorrendo a estrada no sentido Norte demos com uma fazenda a perder de vista, com um plantio sem igual de cana de açucar e muitas palmeiras. Um riacho forte no caudal serpenteava por aquela enorme fazenda, servindo talvez para que as suas águas fossem captadas para as diversas actividades desenvolvidas pelo Homem na plantação.
Terminadas as cerimónias religiosas e após a merenda começamos a pensar em regressar. Se na ida foi o que foi, no regresso seria quase a certeza de se ter uma fila interminavel de veiculos. O Sol já dava mostras de nos querer dizer “adeus” e meu pai não queria fazer o percurso de regresso à luz dos farois.
Mas mesmo assim não nos livramos de regressarmos a “passo de caracol" e chegarmos bastante tarde a casa. Mas, como diz o povo; cansados, mas felizes.
O pior seria o levantar do dia seguinte, pois todos trabalhavamos e no duro. Aquele dia tinha-se tornado mais cansativo que uma dia de praia. Pelo menos para nós os três que nas nossas explorações tinhamos palmilhado “bué” de kilometros.

** aspecto da igreja em dia não festivo **


Nunca mais fomos áquela romaria a Nossa Senhora do Sameiro.
Anos mais tarde passei inúmeras vezes por aquela Povoação quando na vida militar estive colocado em Ambriz e Zau-Évua (zona de S.Salvador).

Saudações e Inté